quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Um Cara Ciumento


Em 1971 os Beatles já estavam mortos e enterrados e o mundo acreditava que o coveiro havia sido Paul McCartney por conta de uma coletiva de imprensa em que ele anunciou o seu desligamento do grupo, sacando rapidamente com a outra mão o seu primeiro álbum solo.Mas os bastidores do fim dos Beatles não foram exatamente como Macca deu a entender.Eles não acabaram por ele haver decidido deixar a banda, mas sim, por ela já haver se esfacelado, depois de inúmeras tentativas de manter o grupo unido (a maioria do próprio McCartney), das pequenas-grandes discussões, das picuinhas financeiras, dos interesses artísticos conflitantes, da presença de Yoko Ono e a insistencia de John Lennon em transformá-la em membro da banda, e last but not least, do fastio em ter de aguentar Paul tomando conta de tudo e dando as ordens como se fosse o dono da bola (e da banda).Enfim, era o fim do sonho.

Se o sonho havia acabado, só o que restava fazer era levantar e seguir em frente.E foi o que John Lennon fez.Seu primeiro disco depois da separação ("Plastic Ono Band", 1970) apresentava-o tentando exorcizar tudo o que o incomodava emocionalmente, da perda da mãe ao fim dos Beatles.Não fez muito sucesso.Já o segundo, lançado no ano de 1971 era mais acessível. “Imagine”.Sim, voce certamente já se cansou de ouvir essa música antes.Mas somente ao ouvir o disco inteiro percebe-se o quanto John Lennon já sabia se virar sem a pequena ajuda de Paul e seus antigos chapas de banda (se bem que George Harrison participa de umas faixas).E é assim que ele se mostra neste álbum, um artista com pleno controle sobre seu trabalho e seguro de seu talento, por mais que em certas canções ele diga o contrário.

Imagine – É a que abre o disco.Tornou-se um hino, uma música símbolo de tudo o que ansiamos que um dia se torne realidade.Mas na idéia de mundo pacífico de Lennon não há lugar para a religião.O primeiro verso já deixa isso claro: “Imagine there`s no heaven”.Talvez pela consequencia que isso traz, pois se não existe o paraíso, também não existirá o inferno.O instrumental comedido deixa a ênfase para os versos de Lennon.Os sóbrios acordes do piano nos dão a impressão de alguma cerimônia está para começar.E após a sua morte a música ficou com um aspecto de réquiem.

Crippled Inside – Depois do hino, uma emulação às “old fashioned songs”americanas dos anos 30.Com vocal baixo, semi-encoberto pelos instrumentos, imitando um cantor canastrão das antigas, Lennon parece descrever a si mesmo na época dos Beatles: “You can shine your shoes/And wear a suit/You can comb your hair/And look quite cute/You can hide your face behind a smile/One thing you can`t hide/Is when you`re crippled inside”.

Jealous Guy – Primorosa canção-de-desculpas que nasceu como “Child of Nature”, composta por John enquanto os Beatles estavam no retiro com o Maharishi Yogi, em 1968.A letra original dizia: “I`m just a child of nature/I don`t need much to set me free/I`m just a child of nature/One of nature`s children”.Virou: “I didn`t mean to hurt you/I`m sorry that I made you cry/I didn`t want to hurt you/I`m just a jealous guy”.Mais um exemplo da busca de Lennon pela simplicidade nas letras.Pode ser considerada uma irmã de “Imagine”.O predominio inicial do piano cria um clima intimista logo invadido por um arranjo de cordas que parece vindo próprio paraíso (que ele gostaria que não existisse), mas aqui, o nome de Deus talvez seja Phil Spector.

It`s So Hard – Lamento (mas não lamúria) sobre as pressões sociais, emocionais, pelas quais nove entre dez seres humanos passam.Falando assim, parece uma obviedade mas nem todos conseguem colocar esse sentimento tão comum de desamparo e insegurança numa canção de forma tão clara e certeira.E ainda fazer com que acompanhemos o ritmo com os pés. “You got to live/You got to love/You got to be somebody/You got to shove/But it`s so hard, it`s really hard/Sometimes I feel like going down”.Parece ser o mesmo tema de “Help”.

I Don`t Want to be a Soldier – A mais longa do disco.Tem uma abordagem musical incrivelmente moderna.Remixada por algum DJ contemporaneo poderia até se transformar em hit nas pistas.Dançante mas sombria, com a voz de Lennon encoberta outra vez, discorre sobre os papéis que ele (na pele ou de um menino, ou de um adolescente, ou mesmo de um homem feito) não gostaria de representar.Por não querer morrer (“soldier”, “beggar”), chorar (“failure”, “rich man”, “churchman”), até mesmo voar (“sailor”, “poor man”).

Give Me Some Truth – Mais um desabafo.Aqui ele esgarça a voz feito um Alice Cooper para declarar estar cheio de políticos, hipócritas, neuróticos, psicóticos, chauvinistas, prima-donnas, esquizofrenicos, paranóicos, egocentricos, e que agora só a verdade lhe interessava.Mais um daqueles rocks que se não agitam as pernas e quadris, atingem direto no coração.E mais uma prova de que Lennon podia se transformar num homem de várias vozes.

Oh My Love – Uma das mais lindas melodias já feitas.Com a delicadeza de quem acompanha o sono do ser amado, um Lennon calmo e sereno declara-se pela primeira vez com os olhos e mente totalmente abertos, não por drogas ou conselhos de algum guru fajuto, mas simplesmente pelo amor (por Yoko, subentende-se).Lennon desenvolveu-se como pianista, e a melodia que ele dedilha é tão linda quanto a que está cantando.

How Do You Sleep? – O famoso petardo de Lennon contra seu ex-parceiro McCartney.Sua raiva e ressentimento, curiosamente, não vem através de gritos ou de um instrumental raivoso, mas sim num canto elaboradamente debochado e num swing envolto por um arranjo de cordas espertíssimo.Paul deve ter ficado louco da vida não só pelas coisas que são ditas na canção (“The only thing you done was Yesterday”, “A pretty face may last a year or two”) mas também por ela ser muito boa.

How? – Mais um lamento de Lennon (aqui beirando a lamúria) sobre sua insegurança e quase descrença em si mesmo, resultado de seus traumas do passado (“How can I go forward when I don`t know which way I`m facing?”, “How can I give love when when love is something I ain`t never had?”).Aqui o ritmo mantem-se suspenso até que ele formule sua longa pergunta retórica a si mesmo, ou como se estivesse num consultório de psicanálise(ou num confessionário).

Oh Yoko! – A canção que fecha o álbum pode servir de contraponto à anterior.John resolve todas as suas dúvidas e indecisões correndo para os braços de Yoko Ono :“In the middle of the night I call your name”, e esse chamado extende-se para toda e qualquer situação: “In the middle of a dream”, “In the middle of a shave”, “In the middle of the bath”, etc.A música é alegre e otimista de um jeito que se acharia impossível para alguém que compôs tantos lamentos.E no final dela surge uma gaita à la Bob Dylan (por mais que Lennon tentasse se livrar das influencias dos anos 60, elas estavam nele feito tatoos).

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